NÃO SEI DANÇAR AO SOM DA MORTE
Morreram duas pessoas na Praia dos Pescadores da Ericeira, caíram de um muro que acaba no passeio do Largo das Ribas e se precipita até ao areal, o mesmo de onde partiu a família real para o exílio, embarcando na barca Bomfim para alcançar o iate D. Amélia e, indo nele, procurando um novo mundo.
Da praia da história e da felicidade dos risos de Verão e dos gritos dos miúdos ao entrar na água fria, da praia da ansiedade dos monarcas receosos, há ainda que somar a praia do luto (já ali morreram outros) e o mais recente na pessoa de dois turistas, que o jornal britânico Daily Mail, antes de nós, identifica como sendo Michael Kearns, de 33 anos e de nacionalidade australiana, e a sua companheira britânica Louise Benson, de 37.
Não nos surpreendemos com a notícia. Conhecemos bem o local e muitas das suas histórias, e a falta de policiamento (em especial noturno, apesar da Guarda ter quartel a poucos metros) que permite o vandalismo (sobretudo em carros dos moradores, simplesmente estacionados), somados às exibições de equilíbrios pós-shots, malabarismos dos ébrios num muro sem piedade que os largará no vácuo ao menor deslize, mais os coros dos bêbados a altas horas da madrugada, e as cenas menos aptas a serem descritas nestas linhas pudicas.
Ao mesmo tempo, é também o Largo dos melhores convívios, o balcão sobre o mar, o poto de encontro entre olhos enamorados e pores de sol incomparáveis e inesquecíveis, pátio de festas e amores, veraneios e prazer, plateia dos fogos de artifício que o palco das festas tanto engrandece.
Num dos cantos tem uns caixotes de lixo metálicos que convidam à separação cívica dos desperdícios – vidro, cartão, orgânicos – mas que são normalmente vandalizados, pelos vândalos e pelo vento tempestuoso, com cheiros que incomodam até à náusea os que vivem no local, ainda as moscas e as ratazanas que não são convidadas de uma vila que é considerada uma das mais belas do País e da Europa…
E agora, a morte de Michael e de Louise, em cima das festas populares.
Horas depois dos cadáveres serem descobertos, as marchas bailavam no mesmo largo. Estranha celebração. Mesmo as marchas de Lisboa e Porto são uma estranha composição de interesses históricos – das Maias e das celebrações do solstício de verão, à proibição das touradas no Terreiro do Paço que alguém resolveu substituir por danças e cantares, ao encerramento em 1916 do Mercado da Ribeira ao uso popular, que em 1925 reabriu as portas e os folguedos. Já sem falar das caricaturas que os portugueses faziam aos invasores franceses e às suas Marches au Flambeaux, as marchas dos archotes, adaptada da tradição francesa, com origem provável nas danças de Entrudo ou nas comemorações da tomada da Bastilha.
Até o escritor William Thomas Bedford falava das marchas de Santo António, em 1787, referindo-se a uma cidade toda iluminada e em festa, surpresa para quem enterrara mortos tão perto, em 1755, com o feroz Terramoto que ainda era visível décadas passadas.
Festa e morte, nem sempre assim tão distantes…
Morreram duas pessoas na Praia dos Pescadores da Ericeira e horas depois dançava-se junto ao muro que as viu partir. Com a marcha da vila a encher os olhos dos turistas ocasionais.
A história é a ficção das ficções – disse Eduardo Lourenço, que tanto estimo e tanto cito.
Não sei dançar ao som da morte – que é um silêncio a gritar memórias. Mas esta história é a prova da ficção das ficções, do tempo que se amarrota e que se calhar por isso não percebe se tem – ou não – futuro.
Alexandre Honrado
Historiador